Danúbio azul

Por Gustavo Martinez

Amanhece o dia na Vila das Tucandeiras. A dura e tortuosa rotina recomeça, no transparecer do primeiro raio de sol. Sob a doce melodia das Cigarras Vizinhas, que cantam sem cessar, a marcha vai firme, fluindo como um rio, e, como o tempo, em duas direções. Enquanto umas vão, outras voltam. A batida dos pés é constante e esparsa, dançando com as flores e o vento.

A Vila das Tucandeiras é uma importante e conceituada cidade do universo dos Formigueiros. É considerada pela elite intelectual local como um grande centro artístico, e referencia em design urbanístico. Foi por anos um grande exemplo de organização e pioneira na introdução da música e da dança como motivação coletiva. A felicidade geral da nação Tucandeira era garantida.

A marcha em si, não era voltada para o extermínio cultural ou étnico de nenhum grupo dentre seus semelhantes. Não visava garantir os privilégios de um grupo social em detrimento da liberdade de outros. E não estava corrompido por interesses de governantes opressores. Muito pelo contrário, a liberdade de expressão e de pensamento sempre fora defendida e assegurada na Vila das Tucandeiras. Cada participante da marcha entendia seu papel, e o cumpria de forma digna e inquestionavelmente da melhor forma possível. Segundo especialistas socioeconômicos, e os dizeres populares, ela era o processo mais importante para a sobrevivência e manutenção da vida Tucandeira.Formigas-carregando-folhas1

Anda, corta, carrega, entrega, anda, dança, rápido. O movimento não para. Os sons encantam. Para os observadores internos, grandes e densas florestas, acompanhadas de uma dinâmica constante. Para externos, apenas gramíneas. O barulho surge destas e do mato seco ao redor coloca em cheque a confiabilidade das faculdades mentais deste segundo grupo. A conclusão óbvia é que se está louco. Mas o barulho existe. E basta se aproximar para um pouco mais para entendê-lo. Era a intensa movimentação das milhares de formigas, que garantiam a perpetuação do formigueiro. Sem vaidades, sem individualismo, e com uma consciência coletiva totalmente incompreensível para espécies baseadas em carbono ditas avançadas com terem o telencéfalo altamente desenvolvido.

Amanhece a noite na Vila das Tucandeiras. O sol se deita para descansar e brilhar no próximo dia. A lua sobe em seu estandarte, e reina, brilhando avassaladoramente. O turno do dia se retira, e entra o pessoal da madrugada. Os trabalhos continuam. Os mais apaixonados, dão breves pausas para contemplar a imensa imensidão que está sobre suas cabeças. Grande demais para qualquer compreensão.

A noite é fria, e o suor escorre de cada integrante do rio Tucandeiro que não cessa em seu movimento harmônico e caótico. Cada uma carregando dez vezes o seu peso, suas dores, desamparos e sentimentos. As cigarras não cantam mais. O orvalho brilha sobre as flores gigantes e maravilhosas que nascem e levam suas vidas batendo papo e floreando como quem não quer nada.

Um estrondo súbito rompe, então, a árdua paz das Tucandeiras. Passos. Gigantes, destruidores, genocidas. Quando se cansam de odiar e matar seus companheiros de vivência, decidem que podem brincar com a vida dos demais seres vivos que, por azar, coabitam o mesmo mundo. Passos daqueles que se acham superiores a tudo e todos, que se consideram grandes o suficiente para julgar quem merece viver ou morrer.

O desespero é geral. Treinadas, as guerreiras Tucandeiras agem o mais rápido que suas curtas pernas lhes permitem. Mães protegem seus filhos, todos se escondem, suas vidas e sentimentos passam diante de seus pequenos olhos, e apreensivos, esperam a passagem daquele anjo da morte.

Os movimentos, no entanto, são diferentes dessa vez. As formigas entendem o padrão, e sentem-se confiantes para sair e observar o que estava acontecendo. Não era violência. Não era o desejo pela morte. Era dança. Dança semelhante àquela que acompanha tão intrinsecamente a marcha Tucandeira. A dança da amável sinfonia das cigarras. São movimentos circulares.

Um casal de gigantes, entorpecidos em seu momento de felicidade, demonstrava algo praticamente esquecido pelo restante da espécie, amor ao próximo. E sob a luz incessante da lua e o brilho do orvalho, dançavam incansavelmente. Um pra cá, um pra lá. Uns tropeços, e outros pisões. Apaixonadas e maravilhadas, as formigas tomaram seus pares e começaram a dançar.

Uma formiga especifica, com fama de ser completamente louca, conversava com um pedaço de Gramínea próximo. A Gramínea parecia não estar muito a fim de interações sociais e recusava-se a responder. Mas isso não desanimou nosso poeta, em seu belo e solitário monólogo. Perguntava-se quantas vezes os gigantes já haviam mudado a sua vida. E além. Perguntava-se quantas vezes elas, as pequenas Tucandeiras, já haviam mudado a vida dos gigantes. E ainda mais. Perguntava-se quantos gigantes já se perguntaram como elas já mudaram suas vidas.

Talvez nenhum gigante tenha se perguntado algo tão importante. Talvez eles não fossem loucos o suficiente para admitir tal possibilidade. Ou recusavam-se a acreditar que suas seguras e perfeitas vidas pudessem ser alteradas por algo tão pequeno. Ou simplesmente preferiam não pensar.

Mas no fundo, aquela pequena e solitária Formiga cujo nome não consigo me lembrar, teve certeza de que aqueles dois gigantes dançantes já haviam se questionado a respeito. E ele, melhor que ninguém, sabia que o amor ali demonstrado através da dança, era conseqüência direta desse questionamento. Eles sabiam que as formigas haviam mudado às suas vidas. E dança era uma forma de agradecimento.

A dança acabou.  Os gigantes pararam de se movimentar e se abraçaram. Ainda encantadas e cantarolando, as Tucandeiras seguiram sua marcha. A marcha pela sobrevivência e felicidade coletiva. Suas vidas jamais seriam as mesmas. E a formiga solitária de nome desconhecido decidiu que iria embora. Decidiu que iria procurar um lugar onde pudesse ser feliz. Onde poderia encontrar-se. Ou pelo menos um lugar onde as gramíneas respondessem.

E foi-se, sem olhar para trás.